A sua bênção, Vadinho.
Sempre tive interesse pelas catedras da linguagem. Parte pelo horror ao ouvir petardos como "menas" ou "mano", parte por influência de meus progenitores. Ela, mestra em letras e literatura. Ele por sua vez, dono de uma intimidade ímpar com bem-falar e escrever. De Oswald à Suassuna, de Maquiavel à Gregório de Mattos, de Balzac a Nelson Rodrigues, adotei de pronto a irreverência em minhas incursões ao folhear de páginas, fazendo jus a minha posição de rebelde da prole. No entanto, foi a película baseada em uma das obras de Jorge Amado que me abriu os olhos aos horizontes da velhacaria.
Lembro-me da primeira vez que assisti Dona Flor, quando o Wilker imortalizou a canalhice em uma daquelas cenas que ficam tatuadas na memória. Ao adrentrar em um distinto prostíbulo, Vadinho era apaludido pelas prestadoras de serviço, pelos cafifas, bêbados, farrapos...e acenava ao povo dizendo "Porreta!! Porreta!!". Venerado tal qual Juscelino na inauguração de Brasília, o anti-heroi personificou as apirações de geraçõoes de caras-de-pau, não somente pelo folclore que envolvia o personagem, mas por ter mandado uma tremenda brasa na Sonia Braga, que naquela época, era um "Croquetão"*.
Naquele momento, percebi que tinha encontrado o Graal. Sim! Seria esta uma das minhas missões nesta vida...ser ovacionado em estabelecimento semelhante, com a mesma distinção e fidalguia. Quissá, pensei eu, poderia um dia atingir a excelência de Vadinho.
Moleque de classe média paulistana, aprendi rápido que a noite de Sampa não é lugar pra amadores. Apesar de não ser chegado ao sexo trocado por papel moeda, peguei gosto pela mistura do whysky "escocês" com o amendoim e a pipoca murcha servidas nas boates. Tais iguarias finíssimas, costumam ser temperadas com uma dose excessiva de cloreto de sódio e outras substâncias que nunca identifiquei propriamente, causando um torpor de sensações incríveis no organismo. Junte a isto, a visão de corpos femininos desnudos, sinuosos e rebolantes. Cataclisma: um coquetel bombástico que geralmente expõe a faceta mais patética e vulneravel de um caboblo: a cegueira temporária causada por uma ereção massiva. Definitivamente o fluxo sanguineo desigual foi uma falha de engenharia lamentável do Criador.
Recusei-me a ser mais uma presa dentro daquelas alcovas. Optei por aprender com os erros e mancadas de outrém, posicionando-me como o gerenciador de situações extremas. Desta forma, consegui galgar níveis superiores na hierarquia prostibular, gozando da aprovação de damas, cafiolos, maitres e seguranças nervosíssimos que não mediam esforços para "acalmar" alguns clientes exaltados sobre diferentes pontos de vista em relação ao valor de consumo de bebidas ou atitutes deselegantes para com as profissionais. Um destes verdadeiros armários, policial reformado que atendia pela alcunha de "Lábios de Mel", tinha um poder de persuasão bestial. Presenciei diversos galinhos-de-briga sucumbirem a seu jugo diante da milenar arte do quebra-dedos ou do pesco-tapa de mão aberta. Um espetáculo digno das arenas romanas. Muitos no entanto, foram salvos por minha intervenção providencial, o que fez surgir de maneira descompromissada um novo personagem: Mael, o parcimonioso.
Fazia uso da psicologia no aconselhamento às beldades trazendo o sorriso e o entendimento à sua dura realidade. Utilizava também de minha formação acadêmica em Propaganda e Marketing nas sugestões de melhoria de produtos e serviços junto aos contratadores. Socializava-me com os trabalhadores(as) dos recintos, compadecendo-me quando da descrição de suas mazelas ou celebrando suas conquistas no dia-a-dia. Esta faceta nunca beirou a falsidade ou a perfídia. Trata-se de um talento natural no entendimento da natureza humana. O mesmo aplicava-se a meus pares.
Este seleto grupo de cavalheiros conhecido por "Puff Brothers"** tornou-se habituê de um dos mais tradicionais lupanares da paulicéia que, juntamente com o saudoso "La Licorne", faz parte da história boêmia da metrópole: o Executivo Bar, na R. 7 de Abril.
Colecionei amizades, histórias impagáveis e andei por caminhos tortuosos nessa empreitada, até que certa feita, ao descer a lúgubre escadaria que leva aos portais helênicos do Executivo Bar, ouvi a chamada de meu nome no sistema: "Gostariamos de agradecer a presença de nosso grande amigo Mael! Mael e amigos! Sejam bem-vindos!"
Um turbilhão de emoções encheu minh'alma naquele momento, ao mesmo tempo que diversas mancebas largavam seus afazeres e corriam em minha direção em efeito tsunami para saudar-me calorosamente, tal qual as mulheres de Athenas cantadas por Chico.
Elevei minhas memórias ao pretérito e percebi que Vadinho fora recriado em uma versão urbano-contamporânea e, triunfante, adentrei ao recinto sob uma chuva de pipocas e pétalas dizendo: "Porreta!!! Porreta!!".
Mael
* Croquetão: Gíria "prá-frentéx" utilizada nos anos 70 que identificava pessoas sexualmente desejáveis. Vide o filme "A Dama do Lotação"
** A confraria dos Puff Brothers frequentou o Executivo Bar ao longo dos anos 90 e seus segredos até hoje são guardados por um rigoroso código de silêncio.